domingo, 12 de julho de 2009

Conversas com Seu Clemente

Seu Clemente é o porteiro do meu prédio. Quando mudei pra cá demorei uns 3 dias até ver a criatura, a portaria sempre tava às moscas e por um tempo achei que nem porteiro tivesse. Quando finalmente o conheci passamos a conversar o tempo necessário pra pegar o carro, passar instruções sobre visitas e entregas e ele me passar os recados. Conversas normais que se tem com pessoas que nos prestam serviços, mas com quem mantemos pouca intimidade. Porém seu Clemente é diferente de qualquer porteiro ou prestador de serviços do mundo, ao menos do mundo como conheço.
Notei que cada vez que saia de casa ele dizia: "Vai com deus, minha filha". À princípio não respondia nada além de um "até mais tarde" até que um dia perguntei: com qual deles, seu clemente? e qual foi minha surpresa ao ver um senhor de 52 anos me dizer: "Com aquele que te traga de volta em segurança."
Daí não tinha como não perceber... ele era único. Quem mais conhece um senhor nessa idade, católico que aceite as crenças e opiniões contrárias a dele de forma tão natural? Passei a dedicar mais tempo às nossas conversas e a perceber quanta sabedoria aquele homem simples de voz mansa e sotaque esquisito guarda atrás daquele balcão de portaria.
Hoje resolvi escrever sobre ele pq acabo de chegar e tivemos mais uma das nossas conversas que me deixam besta de admiração. Cheguei um pouco bêbada (sim, um pouco¬¬) e ele teve que guardar o carro pra mim (sim, eu bebi e dirigi.¬¬). Quando veio me entregar a chave comentei sobre o temporal que caia lá fora, do esforço que tinha feito pra não me molhar e blá blá blá... ele disse:
_É uma pena! Tomara que na próxima a senhora não fuja.
Achei que ele não tivesse entendido, achei que eu não tivesse entendido. E depois do meu olhar de "o senhor tá louco?" ele completou:
_É que é triste demais ver uma moça fugindo. Deve dá um trabalhão, né? Tão mais fácil deixar as coisas ruins passarem.
Nem soube o que responder. Impossível negar como isso caiu como uma luva nesse momento. Impossível negar que isso vai me acompanhar a vida inteira.

Um comentário:

  1. Quero conhecer o 'Seu Clemente'. Gostei da maneira como ele vê as coisas.
    Quanto à senhorita beber e dirigir, depois eu falo em particular.

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Milágrimas (Alice Ruiz)



Em caso de dor, ponha gelo, mude o corte de cabelo
mude como o modelo
vá ao cinema, dê um sorriso, ainda que amarelo
esqueça seu cotovelo
se amargo for já ter sido, troque já esse vestido
troque o padrão do tecido
saia do sério, deixe os critérios, siga todos os sentidos
faça fazer sentido
a cada mil lágrimas sai um milagre
caso de tristeza, vire a mesa, coma só a sobremesa
coma somente a cereja
jogue para cima, faça cena, cante as rimas de um poema
sofra apenas, viva apenas
sendo só fissura, ou loucura, quem sabe casando cura
ninguém sabe o que procura
faça uma novena, reze um terço, caia fora do contexto
invente seu endereço
a cada milágrimas sai um milagre
mas se, apesar de banal,
chorar for inevitável
sinta o gosto do sal, do sal, do sal
sinta o gosto do sal
gota a gota, uma a uma
duas, três, dez, cem, mil lágrimas
sinta o milagre
a cada mil lágrimas sai um milagre
a cada milágrimas

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